domingo, 30 de janeiro de 2011

resenha do livro: VIDA PARA CONSUMO: A transformação das pessoas em mercadorias.

Vida para consumo – Zygmunt Bauman


A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – “objetificados” das escolhas do consumidor.
Pode se dizer que o “consumismo” é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humano rotineiros, permanentes e, por assim dizer, ” neutros quanto ao regime” transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos,desempenhando ao mesmo tempo um papel nos processos de auto- identificação individual e do grupo, assim como na seleção de execução de políticas de vida individuais. O “consumismo” chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade dos produtores era exercido pelo trabalho.
Stephen Bertman cunhou os termos “cultura agorista” e “cultura apressada” para denotar a maneira como vivemos em nosso tipo de sociedade. Podemos dizer que o consumismo líquido-moderno é notável, mais que por qualquer outra coisa, pela (até agora singular)renegociação do significado do tempo.
Tal como experimentado por seus membros, o tempo na sociedade moderna não é cíclico nem linear como costumava ser para os membros de outras sociedades. Em vez disso para usar a metáfora de Michael Maffesoli, ele é “pontilhista”, um tempo pontuado, marcado (senão mais) pela profusão de rupturas e descontinuidades,…A vida, seja individual ou social, não passa de uma sucessão de presentes, uma coleção de momentos experimentados em intensidades variadas.
A vida ‘agorista” tende a ser “apressada”. A oportunidade que cada ponto pode conter vai segui-lo até o túmulo; para aquela oportunidade não haverá “segunda chance”. Cada ponto pode ter sido vivido como um começo total e verdadeiramente novo, mas se não houve um rápido e determindado estímulo à ação instantânea, a cortina pode ter caído logo após o começo do ato, com pouca coisa acontecendo no intervalo. A demora é o serial killer das oportunidades.
Sim, é verdade que na vida “agorista” dos cidadãos da era consumista o motivo da pressa, é em parte, o impulso de adquirir e juntar. Mas o motivo que torna a pressa de fato imperativa é a necessidade dedescartar e substituir.
Como calculou Ignacio Ramonet, nos últimos 30 anos se produziu mais informação no mundo do que nos 5.000 anos anteriores: “Um único exemplar da edição dominical do New York Times contém mais informação do que seria consumida por uma pessoa culta do século XVIII durante toda a vida.”
“Há informação demais por aí”, conclui Eriksen. ” Uma habilidade fundamental na sociedade da informação consiste em se proteger dos 99,9% de informações oferecidas que são indesejadas.”
Sugiro que a idéia de “melancolia” representa, em última instância, a aflição genérica do consumidor ( o Homo eligens, por decreto da sociedade de consumo); um distúrbio resultante do encontro fatal entre a obrigação e a compulsão de escolher/ o vício da escolha e a incapacidade de fazer essa decisão.
Que os seres humanos sempre preferiram a felicidade à infelicidade é uma observação banal, um pleonasmo, já que o conceito de “felicidade” em seu uso mais comum diz respeito a estados ou eventos que as pessoas desejam que aconteçam, enquanto a ” infelicidade” representa estados ou eventos que elas queiram evitar. Os dois conceitos assinalam a distância entre a realidade tal como ela é e uma realidade desejada. Por essa razão, quaisquer tentativas de comparar graus de felicidade experimentados por pessoas que adotam modos de vida distintos em relação ao ponto-de-vista espacial ou temporal só podem ser mal-interpretadas e, em última análise, inúteis.
A maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante de novos começos e ressurreições (chances de renascer).
“Consumir”, portanto, significa investir na avaliação social de si próprio, o que, numa sociedade de consumidores, traduz-se em “vendabilidade”: obter qualidades para as quais já existe uma demanda de mercado, ou reciclar as que já possui, transformando em mercadorias para as quais a demanda pode continuar sendo criada.
Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade.
Citando Nietzche, Anders sugere que hoje em dia o corpo humano ( ou seja o corpo tal como foi recebido por acidente da natureza ) é algo que deve “ser superado” e deixado para trás. O corpo “bruto”, despido de adornos, não reformado e não trabalhado, é algo de que se deve ter vergonha: ofensivo ao olhar, sempre deixando muito a desejar e, acima de tudo, testemunha da falência do dever, e talvez da inépcia, ignorância, impotência e falta de habilidade do “eu”. O “corpo nú”, objeto que por consentimento comum não deveria ser exposto por motivo de decoro e dignidade do “proprietário”, hoje e, dia não significa, como sugere Anders “o corpo despido, mas um corpo onde nenhum trabalho foi feito.”
Num romance com o ótimo título Slowness, Milan Kundera revela o vínculo íntimo entre velocidade e esquecimento ” O nível da velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento”.
A chegada da liberdade, no avatar escolhido pelo consumidor, tende a ser vista como um ato estimulante de emancipação seja das obrigações angustiantes e proibições irritantes, ou das rotinas monótonas e massantes. Logo que a liberdade se estabelece e se transforma numa rotina diária, um novo tipo de terror, não menos apavorante do que aqueles que a liberdade deveria banir, empalidece as memórias de sofrimentos e rancores de passado: o terror daresponsabilidade.
Seria difícil exagerar o poder curativo ou tranquilizador dessa ilusão de domínio sobre o tempo – o poder de dissolver o futuro no presente e de resumi-lo no “agora”. Se como afirma Alain Ehrenberg de maneira convincente, os sofrimentos humanos mais comuns nos dias de hoje tendem a se desenvolver a partir de um excesso de possibilidades, e não de uma profusão de proibições, como ocorria no passado, e se a oposição entre possível e impossível superou a antinomia do permitido e do proibido como arcabouço cognitivo e critério essencial de avaliação e escolha da estratégia de vida, deve-se apenas esperar que a depressão nascida do terror da inadequação venha substituir a neurose causada pelo horror da culpa ( ou seja, da acusação deinconformidade que pode se seguir à quebra das regras ) como a aflição psicológica mais característica e generalizada dos habitantes da sociedade de consumidores.
Outro serviço que uma existência vivida sob estados de emergência recorrentes ou quase perpétuos ( ainda que produzidos de maneira artificial ou enganosamente proclamados) pode oferecer à saúde mental de nossos contemporâneos é uma versão atualizada da ” caça a lebre” de Blaise Pascal, ajustada a um novo ambiente social. Trata-se de uma caçada que, em total oposição a uma lebre já morta, cozinhada e consumida, deixa o caçador com muito pouco tempo, ou mesmo nenhum, para refletir sobre a brevidade, o vazio, a falta de significado ou a inutilidade de suas ações mundanas e, por extensão, de sua vida na Terra como um todo.
A vida de consumo não pode ser outra coisa senão uma vida de aprendizado rápido, mas também precisa ser uma vida de esquecimento veloz. Refere-se acima de tudo, a estar em movimento.

fonte: http://grifando.wordpress.com/2008/10/01/vida-para-consumo-zygmunt-bauman/

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

As tragédias urbanas: desconhecimento, ignorancia ou cinismo?



Por paradoxal que possa parecer, a proposta de Reforma Urbana – e a terra urbana, sua questão central- desapareceu da cena política após a criação do Ministério das Cidades
Por Erminia Maricato
Todos os anos, no período das chuvas, as tragédias das enchentes e desmoronamentos se repetem. Os mesmos especialistas, hidrólogos, geólogos, urbanistas repetem as soluções técnicas para enfrentar o problema. A mídia repete a ausência do planejamento e da prevenção aliada à falta de responsabilidade e “vontade política” dos governos (muitos dos jornalistas como os colunistas globais, donos da verdade, se esquecem de que pregaram o corte dos gastos públicos e das políticas sociais durante duas décadas). As autoridades repetem as mesmas desculpas: foram muitos anos de falta de controle sobre a ocupação do solo (como se atualmente esse controle estivesse sendo exercido), mas “fizemos e estamos fazendo...”. Todos repetem a responsabilidade dos que ocupam irregularmente as encostas e as várzeas dos rios como se estivessem ali por vontade livre e não por falta de opção.
Tragédias decorrentes de causas naturais são inevitáveis e irão se ampliar com o aquecimento global que atualmente é um fato indiscutível. Um serviço de alerta de alto padrão pode minimizar problemas como mostram exemplos de sociedades menos desiguais e que controlam, relativamente, a ocupação do território. Mesmo no Brasil há soluções técnicas viáveis mesmo se considerarmos essa herança histórica de ocupação informal do solo. Mas não há solução enquanto a máquina de fazer enchentes e desmoronamentos – o processo de urbanização - não for desligada.
Desligar essa máquina e reorientar o processo de urbanização no Brasil implica contrariar interesses poderosos que dirigem o atual modelo que exclui grande parte da população da cidade formal. A imensa cobertura midiática dos acontecimentos silenciou sobre os principais fatores que impedem a interrupção da recorrência e da ampliação dessas tragédias anuais. Vamos tentar dar “nomes aos bois”.
A principal causa dessas tragédias é do conhecimento até do mundo mineral: a falta de controle sobre o uso e a ocupação adequada do solo. Parece algo simples, mas é profundamente complexo, pois controlar a ocupação da terra quando grande parte da população é expulsa do campo ou atraída para as cidades, mas não cabe nela, é impossível.
Controlar a ocupação da terra quando esta é a mola central e monopólio de um mercado socialmente excludente (restrito para poucos, apesar da ampliação recente promovida pelos programas do Governo Federal) viciado em ganhos especulativos desenfreados, é inviável. Os trabalhadores migrantes e seus descendentes, não encontram alternativa de assentamento urbano senão por meio da ocupação ilegal da terra e construção precária, sem observância de qualquer lei e sem qualquer conhecimento técnico de estabilidade das construções.  A escala dessa produção ilegal da cidade pelos pobres (i.e. maioria da população brasileira) raramente é mencionada.
Nas capitais mais ricas estamos falando de um quarto a um terço da população - SP, BH, POA -,  metade no RJ e mais do que isso nas capitais nordestinas. Nos municípios periféricos das Regiões Metropolitanas essa proporção pode ultrapassar 70% até 90%.  Áreas vulneráveis, sobre as quais incide legislação ambiental, desprezadas (de modo geral) pelo mercado imobiliário são as áreas que “sobram” para os que não cabem nas cidades formais, e nem mesmo nos edifícios vazios dos velhos centros urbanos cujos números são tão significativos que dariam para abrigar grande parte do déficit habitacional de cada cidade.
Mas, quando um grupo de sem teto ocupa um edifício ocioso que frequentemente acumula dívida de milhões de reais de IPTU, no centro da cidade formal , ação do judiciário, quando provocada, não se faz esperar: a liminar é rápida ainda que esses edifícios estejam bem longe de cumprir a função social prevista na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade. Enquanto isso, aproximadamente milhões de pessoas, sim milhões, ocupam as áreas de proteção ambiental: Áreas de Proteção aos Mananciais, várzeas de rios, beira de córregos, mangues, dunas, encostadas que são desmatadas, etc. Não faltam leis avançadas e detalhadas. Também não faltam Planos Diretores.
Quando se fala em solo urbano ou terra urbana é necessária uma ressalva: não se trata de terra nua, mas de terra urbanizada. A localização da terra ou do imóvel edificado é o que conta. Há uma luta surda e ferrenha pelas melhores localizações, assim como pela orientação dos investimentos públicos que causam aumento dos preços e valorização dos imóveis em determinadas áreas da cidade.
A terra urbana (ou rural) é um ativo da importância do capital e do trabalho. Distribuir renda não basta. É preciso distribuir terra urbana (ou rural) para combater a escandalosa desigualdade social no Brasil.
Quando voltou do exílio, Celso Furtado chamou atenção para a necessidade de distribuir ativos como forma de combater a desigualdade social. São eles, terra e educação. Na era da globalização a terra vem assumindo uma importância estratégica. Conglomerados transnacionais e até mesmo Estados Nacionais disputam as terras agriculturáveis nos países mais pobres do mundo todo. No Brasil ela se encontra sobre intensa disputa no campo ou na cidade.
Infelizmente o Governo Lula ignorou essa questão crucial e a política urbana se reduziu a um grande número de obras, necessárias, porém insuficientes. É verdade que a maior responsabilidade sobre a terra, no âmbito urbano, é municipal ou estadual (quando se trata de metrópoles). Mas é preciso entender porque um programa como o Minha Casa Minha Vida, inspirado  em propostas empresariais, causou um impacto espetacular no preço de imóveis e terrenos em 2010.
Financiar a construção de moradias sem tocar no estatuto da propriedade fundiária, sem regular ganhos especulativos ou implementar a função social da propriedade gerou uma transferência de renda para preço dos imóveis. E parte dos conjuntos habitacionais de baixa renda continua a ser construída fora das cidades, repetindo erros muito denunciados na prática do antigo BNH. Os prefeitos que não querem ou não conseguem aplicar a função social da propriedade enfrentam a dificuldade de comprar terrenos a preço de mercado, altamente inflado, para a produção de moradias sociais. Já os governadores, em sua absoluta maioria, ignoram a necessidade de políticas integradas nas metrópoles.
As demais forças que orientam o crescimento das cidades no Brasil estão muito ligadas à essa lógica da valorização imobiliária com exceção do automóvel que ocupa um lugar especial. Ao lado do capital imobiliário, as grandes empreiteiras de obras de infra-estrutura orientam o destino das cidades quando exercem pressão sobre os orçamentos públicos (via vereadores, deputados, senadores ou governantes) para garantir determinados projetos de que podem ser oferecidos ao governante de plantão como forma de “marcar” a gestão. As obras determinam o processo de urbanização mais do que leis e Planos Diretores, pois o que temos, em geral, são planos sem obras e obras sem planos. A política urbana se reduz à discussão sobre investimentos em obras e isso está vinculado à lógica do financiamento das campanhas a ponto de determinar as obras mais visíveis e aquelas que possam corresponder ao cronograma eleitoral.
As obras viárias são priorizadas pela sua visibilidade e, é claro, para viabilizar o primado do automóvel, outro dos principais motivos da completa falência das nossas cidades. Os males causados pela matriz de mobilidade baseada no rodoviarismo, ou mais exatamente pelos automóveis, são por demais conhecidos: o desprezo pelo transporte coletivo, ignorando o aumento das viagens a pé, o alto custo dos congestionamentos em horas paradas, em vidas ceifadas nos acidentes que apresentam números de guerra civil, em doenças respiratórias e cardíacas devido à poluição do ar, na contribuição para o aquecimento do planeta e o que nos interessa aqui, particularmente na impermeabilização do solo.
Parece incrível que em pleno século XXI foi aprovada e iniciada a ampliação da nefasta marginal do Rio Tietê (o governador Serra, candidato à presidência se enroscou  no cronograma da obra que ainda levará muito tempo para ser terminada) um equívoco dos engenheiros urbanistas que se definiram pelo modelo rodoviarista para São Paulo e em conseqüência para todo o Brasil.  (Ocupar margens dos rios quando estas deveriam dar vazão às cheias do período das chuvas é, como sabemos, contribuir com a insustentabilidade urbana).
Agora os carros e caminhões parados com seus escapamentos despejando poluentes na atmosfera ocupam oito pistas da marginal ao invés das 4 anteriores. Mas essa estratégia não é exclusividade de um partido. Governos de todos os partidos na cidade de São Paulo contribuíram para o deslocamento da centralidade fashion da cidade em direção ao sudoeste produzindo, com pontes, viadutos, obras de drenagem, trens, despejo de favelas, operação urbana e projetos paisagísticos uma nova fronteira de expansão para o capital imobiliário.
As obras de drenagem oferecem um exemplo dos erros de uma certa engenharia que ao invés de resolver, cria problemas. Durante décadas as empreiteiras se ocuparam em tamponar (“canalizar”) córregos e construir avenidas sobre eles, impermeabilizando o solo e permitindo que as águas escoassem mais rapidamente para as calhas dos rios. Agora, quando se trata de reter a água, surge a “moda” dos piscinões. Um mal necessário mas que não passa de paliativo já que o solo continua a ser impermeabilizado e a sua ocupação descontrolada.
Diante desse quadro espantoso, é surpreendente que a questão urbana tenha perdido a importância a ponto de ser quase nulo o seu destaque programas de governo de todos os partidos e estar ausente dos debates nas últimas campanhas eleitorais. Até mesmo a proposta de Reforma Urbana, reconstruída a partir da luta contra o Regime Militar,  inspiradora da criação do Ministério das Cidades, que tinha como centralidade a questão fundiária, desapareceu da agenda política. Movimentos sociais estão mais ocupados com conquistas pontuais na área de habitação.
O Ministério das Cidades, criado para tirar das trevas a questão urbana brasileira, combatendo o analfabetismo urbanístico está nas mãos do PP (partido do ex-prefeito e governador Paulo Maluf e ex- presidente da Câmara Severino Cavalcanti) desde 2005.  Algumas poucas gestões municipais “de um novo tipo” que surgiram nos anos 1980 e 1990, voltadas para a democratização das cidades, dos orçamentos, das licitações, do controle sobre o solo, ainda tentam remar contra a maré contrariando interesses particulares locais, mas elas são cada vez em menor número diante do crescimento do pragmatismo dos acordos políticos. A Copa e as Olimpíadas e as mega obras que as acompanharão ocupam a preocupação dos gestores urbanos que insistem em concentrar investimentos em novos cartões postais e novas áreas de valorização imobiliária até que a próxima temporada de chuvas traga a realidade de volta por alguns dias e a mídia insista na falta de planejamento e prevenção.

Erminia Maricato é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi coordenadora do programa de pós-graduação (1998-2002), secretária de Habitação de São Paulo (1989-1992) e secretária-executiva do Ministério das Cidades (2003-2005).

sábado, 8 de janeiro de 2011

SEJA HOMEM!

Seja Homem!!
por Luciano Alvarenga - Sociólogo

Os homens estão em crise de identidade. O heterossexual masculino, uma referência social e de valores por séculos, vê agora a emergência de uma cultura urbana, liberal, descolada, digital, sem compromisso com tradições de nenhum tipo, vinculada a um discurso aberto e franco sobre sexualidade e que tem na figura do homossexual seu maior representante. Ou, como me disse alguém, “ser gay é ser atual”. Em contraposição, a cultura hetero masculina está hoje associada a tudo o que é ruim. É a corrupção política, a falta de ética e moral de líderes religiosos ou não, a injustiça praticada por magistrados e juízes, é a falta de autoridade dos pais, tios e avós. Dos vereadores aos senadores estão todos podres, segundo a visão da maioria. Talvez por isso uma mulher tenha ganhado a presidência. A crise do mundo, suas guerras sem fim, a hecatombe ambiental, a pobreza por toda parte é facilmente atribuída ao homem e sua ganância. De repente toda a autoridade, que desde sempre esteve vinculada ao ser masculino, está corrompida e desacreditada. Ou, como dizia um adágio dos anos 1960 nos Estados Unidos, “toda autoridade é corrupta”.
A crise do masculino é ao mesmo tempo a crise dos grandes ideais de Ética, Moral e Justiça, bandeiras erguidas por gerações de grandes homens. No entanto, no mesmo momento em que o mundo se erguia contra o machismo, autoritarismo e a frieza do sistema capitalista, subprodutos daquelas grandes e honestas bandeiras dos anos 60, desmoronavam uns e outros. Ou, em melhores palavras, foram vencidos ao mesmo tempo os machismos e autoritarismos e o melhor da cultura masculina. Sobraram, apesar de tudo, os homens e quase nada para representarem.
Como o Brasil viveu quase nada daquilo tudo, ou melhor, ficou com uma ditadura de 21 anos, cabe viver agora as mudanças que em outros centros já se processaram. É por isso que me pergunto a razão do número impossível de não ver de gays que crescem ocupando os espaços, ditando as modas e definindo os valores que devem nortear toda a sociedade. Entre um hetero masculino em crise e mal visto e um gay atual e na moda, parece que as preferências têm recaído sobre o segundo.
A questão é: vale a pena ser homem, no sentido tradicional e único ainda conhecido? Se ser homem é ter que arcar com todo tipo de coisa mal vista e responsável pelas piores coisas com as quais a sociedade está tendo que lidar, é possível que os gays que proliferam entre todas as idades, especialmente entre adolescentes e garotos, sejam resultado de uma negação em ser homem. Quando observamos, por outro lado, um número crescente de jovens que não querem ter filhos, nem ser mães no sentido tradicional, estamos diante da possibilidade das mulheres estarem se negando a formação de uma família. É bom lembrar que também do lado delas aumenta o número de mulheres preferindo se relacionar sexual-afetivamente com outra mulher.
A verdade é que os homens, ao mesmo tempo em que viram as mulheres ocuparem seus espaços na sociedade e no mundo do trabalho, viram também sua importância e seu poder simbólico diminuírem na mesma velocidade em que se estreitavam sua geografia. Entretanto, não foram apenas os espaços geográficos diminuídos que explicam a crise profunda do masculino, mas o acovardamento em continuar sustentando as bandeiras da Ética, da Justiça e da Moral. A corrupção a que se entregou toda figura pública e de poder assentado no masculino foi uma opção e não uma contingência. A crise do masculino hoje é mais do que falta de espaço e poder, porque poder ainda há muito. A crise do masculino é, sim, ter permitido a deterioração da autoridade masculina representada nas instituições sociais, via um processo de corrosão do caráter, corrupção política e esvaziamento de qualquer tipo de ética de mediação das relações sociais.
O que estamos assistindo não é apenas a um mundo machista se desmanchando lentamente escondido ainda em alguns nichos onde pode urrar suas verdades datadas. Estamos vendo as novas gerações de garotos se recusando a ser homens no sentido masculino do gênero. Ao se recusarem a ser homens estão também dizendo que nada no masculino pode ser reivindicado na construção de suas identidades. Ocorre dizer que a crise do masculino é, também, a crise da sociedade e resolver a segunda implica resolver a primeira. O acento no sexo como definição da identidade, ou pelo menos a possibilidade de vivê-lo sem amarras ou constrangimento, e ter a vida circundada pelas possibilidades sexuais envoltas, inclusive numa jovialidade eterna, é a fuga para o mundo das sensações e da estética numa sociedade em profunda crise ecológica e espiritual.
Ser gay para homens e mulheres, pelo menos aqueles que o são por escolha e não por definição genética, pode ser uma solução casual ante problemas sem solução aparente, mas lega um grau de angústia, falta de resposta e sem sentido que só pode ser momentaneamente preenchido com doses cavalares de mais sexo (ainda que só nas palavras), e mais juventude. A saturação de sexo que qualquer cidadão urbano é obrigado a consumir diariamente, seja pela propaganda televisiva, nos cartazes, outdoors, artigos de revistas e conselheiros para relacionamentos falidos, evidencia que na falta de referências morais e éticas e novos contornos para outra sociedade possível, sobrou apenas o envenenamento das sensações sexuais injetadas continuamente nas pessoas para que estas queiram algo que na verdade está aquém das perguntas, das necessidades e das transcendências a que o humano está condenado a responder. Numa linha, no lugar do vazio existencial e espiritual injeta-se sexo.
A homossexualidade como alternativa ao masculino em crise, e eu defendo o direito de qualquer um vivê-la, não oferece absolutamente nada além da própria crise vestindo novas roupas. A crise do masculino só encontrará bom termo quando os melhores valores da sociedade, aqueles da Ética, da Moral e da Justiça se tornarem novamente guia e referência.