sábado, 22 de novembro de 2014

500 anos de corrupção

500 anos de corrupção

De repente, como um raio no céu claro, o governo foi tomado por extraordinário interesse pela corrupção –no passado. Na Austrália, Dilma Rousseff ensaiou "listar uma quantidade imensa de escândalos no Brasil que não foram investigados". A historiadora amadora, porém, só fingia falar sobre o passado: "Talvez esses escândalos que não foram investigados sejam responsáveis pelo que aconteceu na Petrobras". Ah, sim!, trata-se, então, do presente.
Governantes deveriam exercitar a prudência ao especular sobre corrupção em governos anteriores. Se têm conhecimento de denúncias fundamentadas, a lei os obriga a deflagrar uma investigação policial e judiciária. Se não o fazem, a fim de manipular halos de suspeita em seu benefício político, incorrem no crime de prevaricação. Os áulicos, por outro lado, não sendo autoridades, podem especular alegremente. Nesses dias de Lava Jato, é fácil identificá-los por seus frêmitos de indignação moral com a corrupção pregressa.
O passado que preferem é o recente: o governo FHC. Do nada, adoradores do estatismo começaram a honrar a memória do incauto Paulo Francis privatista de 1996, submetido a processo intimidador depois de afirmar que "os diretores da Petrobras" constituíam "a maior quadrilha que já atuou no Brasil". Mas, num tour de force, os neo-historiadores da corrupção já se aventuram em tempos anteriores, reavivando a memória da ditadura militar, que converteu em potências a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Mendes Júnior e a Queiroz Galvão, além de servir de berço para a OAS e a UTC. Logo, sua ira santa nos conduzirá ao estouro da bolha do Encilhamento, sob Deodoro da Fonseca, e às aquisições de escravos traficados ilegalmente por Paulino José de Souza, então ministro do Exterior, no Segundo Reinado.
O foco nos "500 anos de corrupção" não se destina a recordar que a corrupção nasceu antes de 2003, pois o óbvio dispensa explicação. A finalidade é entorpecer-nos, normalizando o escândalo em curso. Eles almejam dissolver a corrupção investigada na corrupção falada e o presente singular (a colonização partidária da Petrobras) no genérico histórico (a captura do poder público por interesses privados). Somos assim, sempre fomos, sussurram, inoculando-nos o soro da letargia, enquanto o ministro da Justiça critica a "politização" do escândalo (não a da Petrobras!). A corrupção mora na índole do povo brasileiro: "Cada um de nós tem um dedão na lama", assegura um célebre empresário, enquanto a presidente antecipa que pretende violar a lei sobre declaração de inidoneidade ("A gente não vai colocar um carimbo na empresa").
Não há lei que puna a corrupção da linguagem. Nos tempos bons, o lulopetismo anuncia-se como o Ato Inaugural: "Nunca antes na história deste país". Nos tempos ruins, exibe-se como vítima da Tradição: "Nunca foi diferente na história deste país". Mas a contradição sempre tem o potencial para se superar como dialética. Na Austrália, Dilma se esqueceu do tão recente "mensalão" para rotular o "petrolão" como o "primeiro escândalo da nossa história que é investigado". Os áulicos já a seguem (afinal, é para isso que existem), saudando o Ano Zero da guerra à corrupção.
"Dilma agora lidera a todos nós", anuncia o empresário dos dedos sujos de lama –que, casualmente, tem como maior cliente a estatal Correios. A narrativa do Ano Zero descortina possibilidades ilimitadas. Dilma "não sabia de nada"? Esqueça. Nos 12 anos em que dirigiu a Petrobras diretamente (como presidente do Conselho de Administração) ou indiretamente (como ministra e presidente da República), os partidos da "base aliada" privatizaram a estatal, desviando dezenas de bilhões de reais. Não é que a Líder dos Imundos "não sabia". Sabia –mas, sábia, deixou a operação se alastrar para, no Ano Zero, pegar todos os bandidos juntos. Ah, bom!

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2014/11/1551703-500-anos-de-corrupcao.shtml

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

'Bolivariano', você disse?

'Bolivariano', você disse?

Gilmar Mendes será, daqui a dois anos, o único ministro do STF não indicado pelo lulopetismo. À Folha (3/11), ele alertou para o risco de que o Supremo se transforme numa "corte bolivariana". Seria o lulopetismo uma versão descolorida do "bolivarianismo"?
A revolução "bolivariana" definiu como meta política a unificação da América Latina contra os EUA e, como meta econômica, a implantação de um sistema estatista. O lulopetismo não compartilha tais metas. Na economia, procura modernizar o capitalismo de estado varguista. Na política, almeja apenas uma perene hegemonia. O regime chavista é revolucionário; o lulopetismo é populista e conservador. Sob o chavismo, a Venezuela tenta ser o que Cuba tenta deixar de ser, afundando no vórtice de uma crise terminal. Sob o lulopetismo, o Brasil reitera seus próprios anacronismos, desperdiçando oportunidades históricas.
Há uma diferença crucial de origem. O movimento "bolivariano" é fruto da ruptura: nasceu do colapso da democracia oligárquica venezuelana, no "Caracazzo", o levante popular de 1989, e consolidou-se após o frustrado golpe antichavista de 2002. O lulopetismo, pelo contrário, é fruto da continuidade: surgiu com a redemocratização e conquistou o Palácio na moldura da estabilização da democracia. O chavismo substituiu a desmoralizada elite política venezuelana; o lulopetismo integrou-se às elites políticas tradicionais, até converter-se no fiador principal de seus negócios e interesses.
Palavras servem para iludir. Os ataques "bolivarianos" da campanha de Dilma contra Aécio funcionaram como toque de reunir para os movimentos sociais, o PSOL e os intelectuais de esquerda. Confrontado com o risco de derrota, o lulopetismo precisava recuperar uma franja periférica do eleitorado que se dispersava. Concluída a disputa, o governo realiza o giro ortodoxo, abandonando a "nova matriz econômica". O estelionato, anunciado pela elevação dos juros, tem roteiro conhecido: recomposição de preços de combustíveis, choque de tarifas de energia, ajuste fiscal. Os chavistas vestem-se de vermelho o tempo todo; Lula e Dilma trocam o vermelho pelo branco assim que as urnas se fecham.
Palavras têm alguma importância. Na sua Resolução Política pós-eleitoral, o PT toca os acordes de uma marcha "bolivariana" para acusar a oposição de representar o "retrocesso neoliberal", articular "manobras golpistas" e fomentar "o machismo, o racismo, o preconceito, o ódio, a intolerância". O lulopetismo, um fruto da democracia, não aprendeu até hoje a regra de ouro do pluralismo político: a legitimidade da oposição. O seu único traço comum com o "bolivarianismo" encontra-se nessa hostilidade visceral à convivência democrática entre "verdades" distintas e concorrentes. O PT não é "bolivariano", mas carrega no seu DNA a convicção pervertida dos antigos partidos comunistas: imagina-se portador da Chave da História.
O alerta de Gilmar Mendes, formulado como um equívoco conceitual, deve ser refraseado. Sob o influxo das nomeações lulopetistas, o STF não se transformará numa "corte bolivariana", pois não será posto a serviço de um projeto político revolucionário. Contudo, depois da experiência do "mensalão" e na hora da eclosão do escândalo na Petrobras, o governo procurará submeter o Supremo a um torno mecânico implacável, convertendo-o em Tribunal da Absolvição.
O contexto faz a diferença. Na "pátria bolivariana", a independência dos Poderes só existe como preceito constitucional irrelevante; no Brasil, apesar de tudo, o preceito conserva sua força, como evidencia o decreto legislativo que fulminou os "conselhos participativos". Compete ao Senado avalizar as indicações presidenciais para o STF. Diante de uma opinião pública atenta, os senadores encararão o dever de vetar a nomeação de "juízes do Partido". A Venezuela não é aqui.

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2014/11/1545247-bolivariano-voce-disse.shtml