domingo, 28 de agosto de 2011

O QUE É ETNOCENTRISMO (texto de apoio 1º 5 e 6 POZZI)


Everardo Rocha
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é  a existência. No plano intelectual, pode  ser visto como a  dificuldade  de  pensarmos a  diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc.
Perguntar  sobre  o que  é  etnocentrismo é, pois, indagar  sobre  um  fenômeno onde  se  misturam  tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes dois planos do espírito humano - sentimento e pensamento - vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente
Assim, a  colocação central sobre  o etnocentrismo pode  ser  expressa  como a  procura  de  sabermos os mecanismos, as formas, os caminhos e  razões, enfim, pelos quais tantas e  tão profundas distorções se perpetuam nas emoções, pensamentos, imagens e  representações que  fazemos da vida daqueles que são diferentes de  nós. Este  problema  não é  exclusivo de  uma  determinada  época  nem  de  uma  única sociedade. Talvez o etnocentrismo seja, dentre os fatos humanos, um daqueles de mais unanimidade.
Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a experiência de um choque cultural.
De um lado, conhecemos um  grupo do “eu”, o "nosso" grupo, que  come igual, veste igual, gosta  de coisas parecidas, conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa  igual, mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma empresta à vida significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente. Aí então de  repente, nos deparamos com  um  "outro", o grupo do "diferente" que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este “outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo e, ainda que diferente, também existe.
Este  choque gerador  do etnocentrismo nasce, talvez, na  constatação das diferenças. Grosso modo, um mal-entendido sociológico. A diferença  é  ameaçadora porque  fere  nossa  própria  identidade  cultural. O monólogo etnocêntrico pode, pois, seguir um caminho lógico mais ou menos assim: Como aquele mundo de doidos pode funcionar? Espanto! Como é que eles fazem? Curiosidade perplexa? Eles só podem estar errados ou tudo o que eu sei está errado! Dúvida ameaçadora?! Não, a vida deles não presta, é selvagem, bárbara, primitiva! Decisão hostil!
O grupo do "eu" faz, então, da sua visão a única possível ou, mais discretamente se for o caso, a melhor, a  natural, a  superior, a  certa. O grupo do "outro" fica, nessa  lógica, como sendo engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível. Este processo resulta num considerável reforço da identidade do "nosso" grupo.
No limite, algumas sociedades chamam-se por  nomes que  querem  dizer  "perfeitos", "excelentes" ou, muito simplesmente, "ser  humano" e ao "outro", ao estrangeiro, chamam, por vezes, de "macacos da terra" ou "ovos de piolho". De qualquer forma, a sociedade do "eu" é a melhor, a superior. É representada como o espaço da cultura e da civilização por excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o progresso.
A sociedade do "outro" é atrasada. É o espaço da natureza. São os selvagens, os bárbaros. São qualquer coisa  menos humanos, pois, estes somos nós. O barbarismo evoca  a  confusão, a  desarticulação, a desordem. O Selvagem é o que vem da floresta, da selva que lembra, de alguma maneira, a vida animal.
O outro" é o "aquém" ou o "além", nunca o "igual" ao "eu". O que importa realmente, neste conjunto de idéias, é o fato de que, no etnocentrismo, uma mesma atitude informa os diferentes grupos. O etnocentrismo não é propriedade, como já disse, de uma única sociedade, apesar  de  que, na nossa, revestiu-se  de  um  caráter ativista  e  colonizador  com  os mais diferentes empreendimentos de conquista e destruição de outros povos. A atitude etnocêntrica tem, por outro lado, um correlato bastante importante e que talvez seja elucidativo para  a  compreensão destas maneiras exacerbadas e até  cruéis de  encarar  o "outro". Existe  realmente, paralelo à violência que a atitude etnocêntrica encerra, o pressuposto de que o "outro" deva ser alguma coisa que não desfrute da palavra para dizer algo de si mesmo. Creio que é necessário examinar isto melhor e vou fazê-lo através de uma pequena estória que me parece exemplar.

Ao receber  a missão de  ir  pregar  junto aos selvagens um  pastor  se  preparou durante  dias para  vir  ao Brasil e  iniciar no Xingu seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para  si próprio apenas um  moderníssimo2 relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se  em  meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e  sua doutrinação. Tempos depois, fez-se  amigo de um  índio muito jovem  que  o acompanhava  a  todos os lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no pulso e consultava freqüentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior  estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrarlhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando seguidamente  o galho superior  de  uma árvore  altíssima  nas cercanias da  aldeia, o índio fez  o pastor  divisar, não sem  dificuldade, um  belo ornamento de  penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no rosto do pastor. Fora-se o relógio. Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: "A catequese e os selvagens".
Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze para as dez. Era hora de  ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o que aquele índio foi fazer com o meu relógio. Esta  estória, não necessariamente  verdadeira, porém, de  toda  evidência, bastante  plausível, demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do Etnocentrismo. Em  primeiro lugar, não é  necessário ser  nenhum  detetive  ou especialista  em Antropologia  Social (ou ainda  pastor)  para  perceber  que, neste  choque  de  culturas, os personagens de  cada  uma  delas fizeram, obviamente, a  mesma  coisa. Privilegiaram  ambos as funções estéticas, ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do "outro", desempenhavam funções que seriam principalmente  técnicas. Para o Pastor- o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto quanto o que  causaria ao jovem  índio conhecer o uso que  o pastor  deu a  seu arco e  flecha. Cada  um  "traduziu" nos termos de sua  própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original foi forjado na cultura do "outro". O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor da cultura do "outro" nos termos da cultura do grupo do "eu".
Em  segundo lugar, esta  estória  representa  o que  se poderia  chamar, se isso fosse  possível, de  um etnocentrismo "cordial", já  que  ambos - o índio e  o pastor  - tiveram  atitudes concretas sem maiores conseqüências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do "outro" que se reveste de uma  forma  bastante  violenta. Como já  vimos, pode  colocá-lo como "primitivo", como "algo a  ser destruído", como "atraso ao desenvolvimento", (fórmula, aliás, muito comum e de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).
Assim, por exemplo, um famoso cientista do início do século, Hermann von Ihering, diretor do Museu Paulista, justificava o extermínio dos índios Caingangue por serem um empecilho ao desenvolvimento e à colonização das regiões do sertão que eles habitavam. Tanto no presente como no passado, tanto aqui como em  vários outros lugares, a  lógica  do extermínio regulou, infinitas vezes, as relações entre  a chamada “civilização ocidental” e as sociedades tribais. Isso lembra o comentário, tristemente exemplar, de uma criança, de um grande centro urbano, que, de  tanto ouvir absurdos sobre o índio, seja em casa, seja  nos livros didáticos, seja  na  indústria  cultural, acabou por  defini-los dizendo: "o índio é  o maior amigo do homem".
Em terceiro lugar, a estória ainda ensina que  o "outro" e  sua cultura, da qual falamos na nossa sociedade, são apenas uma representação, uma imagem distorcida que  é manipulada como bem entendemos. Ao "outro" negamos aquele mínimo de autonomia necessária para falar de si mesmo. Tudo se passa como se fôssemos autores de filmes e livros de ficção científica onde podemos falar e pensar o quanto é  cruel, grotesca  e  monstruosa  uma  civilização de  marcianos que  capturou nosso foguete. Também, porque  somos os autores destes filmes e  livros, nada  nos impede  de  criarmos um marciano simpático, inteligente e superpoderoso que com incrível perícia salva a Terra de uma colisão fatal com um meteoro gigante. Claro, como o marciano não diz nada, posso pensar dele o que quiser.     
3 Assim, de um ponto de vista do grupo do “eu” os que estão de fora podem ser brabos e traiçoeiros bem como mansos e  bondosos. Aliás, "brabos" e  "mansos" são dois termos que  muitas vezes foram empregados no Brasil para designar o "humor" de determinados animais e o "estado" de várias tribos de índios ou de escravos negros.       A figura do louco, por exemplo, na nossa sociedade, é manipulada por uma série de representações que oscilam entre estes dois pólos, sendo denegrida ou exaltada - como o marciano - ao sabor das intenções que  se tenha. Isto não só ao longo da  história, mas também  em  diferentes contextos no presente. A expressão "fulano é muito louco" pode ser elogiosa em certos casos e pejorativa em outros. Em alguns momentos da história o louco foi acorrentado e  torturado, em outros, foi feito portador de uma palavra sagrada e respeitada. Aqueles que são diferentes do grupo do eu - os diversos "outros" deste mundo - por não poderem dizer algo de si mesmos, acabam representados pela ótica etnocêntrica e segundo as dinâmicas ideológicas de determinados momentos. Na  nossa  chamada  "civilização ocidental", nas sociedades complexas e  industriais contemporâneas, existem diversos mecanismos de reforço para o seu estilo de vida através de representações negativas do "outro". O caso dos índios brasileiros é  bastante  ilustrativo, pois alguns antropólogos estudiosos do assunto já  identificaram  determinadas visões básicas, determinados estereótipos, que  são permanentemente aplicados a estes índios.
Eu mesmo realizei, há alguns anos, um estudo sobre as imagens do índio nos livros didáticos de História do Brasil. Estes livros têm importância fundamental na formação de uma imagem do índio, pois são lidos e, mais ainda, estudados por milhões de  alunos pré-universitários nos mais diversos recantos do país. Alguns destes livros alcançam  tiragens altíssimas e  já  tiveram mais de duzentas edições. Através deles circula um "saber" altamente etnocêntrico - honrosas exceções sobre os índios. Os livros didáticos, em  função mesmo do seu destino e  de  sua  natureza, carregam  um  valor  de autoridade, ocupam um lugar de supostos donos da verdade. Sua informação obtém este valor de verdade pelo simples fato de que quem sabe seu conteúdo passa nas provas. Nesse sentido, seu saber tende a ser visto como algo "rigoroso", “sério” e  "científico". Os estudantes são testados, via de  regra, em  face do seu conteúdo, o que faz com que as informações neles contidas acabem se fixando no fundo da memória de todos nós. Com ela se fixam também imagens extremamente etnocêntricas. Alguns livros colocavam que os índios eram  incapazes de  trabalhar nos engenhos de açúcar por  serem indolentes e preguiçosos. Ora, como aplicar adjetivos tais como "indolente" e "preguiçoso" a alguém, um povo ou uma  pessoa, que  se  recuse  a  trabalhar  como escravo, numa  lavoura  que não é  a  sua, para a riqueza de um  colonizador que nem  sequer  é  seu amigo: antes, muito pelo contrário, esta recusa é, no mínimo, sinal de saúde mental.
Outro fato também interessante é que um número significativo de livros didáticos começa com a seguinte informação: os índios andavam nus. Este "escândalo" esconde, na verdade, a nossa noção absolutizada do que deva ser uma  roupa e o que, num corpo, ela deve mostrar e esconder. A estória do nosso amigo missionário serviu para a constatação das dificuldades de definir o sentido de um objeto – o relógio ou o arco - fora  dos seus contextos culturais. Da mesma maneira, nada  garante  que  os índios andem nus a não ser a concepção que eles mesmos tenham de nudez e vestimenta.
Assim, como o "outro" é alguém calado, a quem não é permitido dizer de si mesmo, mera imagem sem voz, manipulado de acordo com desejos ideológicos, o índio é, para o livro didático, apenas uma forma vazia que empresta sentido ao mundo dos brancos. Em outras palavras, o índio é "alugado" na História do Brasil para aparecer por três vezes em três papéis diferentes. O primeiro papel que  o índio representa  é  no capítulo do descobrimento. Ali, ele  aparece  como “selvagem”, "primitivo", "pré-histórico", "antropófago", etc. Isto era, para  mostrar  o quanto os portugueses colonizadores eram "superiores" e “civilizados”. O segundo papel do índio é no capítulo da catequese. Nele o papel do índio é o de "criança", "inocente", "infantil", "almas virgens", etc., para  fazer parecer que os índios é que precisavam da “proteção” que a religião lhes queria impingir.
O terceiro papel é muito engraçado. É no capítulo "Etnia brasileira". Se o índio já havia aparecido como "selvagem" ou "criança", como iriam  falar de um povo - o nosso - formado por portugueses, negros e "crianças" ou um povo formado por portugueses, negros e "selvagens"? Então aparece um novo papel e o 4 índio, num passe de mágica etnocêntrica, vira "corajoso", "altivo", cheio de "amor à liberdade". Assim  são as sutilezas, violências, persistências do que  chamamos etnocentrismo. Os exemplos se multiplicam nos nossos cotidianos. A "indústria cultural" - TV, jornais, revistas, publicidade, certo tipo de cinema, rádio - está freqüentemente fornecendo exemplos de etnocentrismo. No universo da indústria cultural é  criado sistematicamente  um  enorme  conjunto de  "outros" que  servem  para  reafirmar, por oposição, uma série de valores de um grupo dominante que se autopromove a modelo de humanidade. Nossas próprias atitudes frente a outros grupos com os quais convivemos nas grandes cidades são, muitas vezes, repletas de  resquícios de atitudes etnocêntricas. Rotulamos e aplicamos estereótipos através dos  quais nos guiamos para o confronto cotidiano com a diferença. As idéias etnocêntricas que temos sobre as "mulheres", os “negros”, os "empregados", os "paraíbas de obra", os "colunáveis", os "doidões", os "surfistas", as "dondocas", os "velhos", os "caretas", os "vagabundos", os gays e todos os demais "outros" com  os quais temos familiaridade, são uma  espécie  de  "conhecimento" um  "saber", baseado em formulações ideológicas, que  no fundo transforma  a  diferença  pura  e  simples num  juízo de  valor perigosamente etnocêntrico. Mas, existem idéias que se contrapõem ao etnocentrismo. Uma das mais importantes é a de relativização. Quando vemos que as verdades da  vida  são menos uma  questão de  essência  das coisas e  mais uma questão de posição: estamos relativizando. Quando o significado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em  que  acontece: estamos relativizando. Quando compreendemos o "outro" nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos relativizando. Enfim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença. A nossa  sociedade  já  vem, há  alguns séculos, construindo um  conhecimento ou, se  quisermos, uma ciência sobre a diferença entre os seres humanos. Esta ciência chama-se Antropologia Social. Ela, como de  resto quase todas as atitudes que  temos frente ao "outro", nasceu marcada pelo etnocentrismo. Ela também possui o compromisso da procura de superá-lo. Diferentemente do saber de "senso comum", o movimento da Antropologia  é  no sentido de  ver  a  diferença  como forma  pela  qual os seres humanos deram  soluções diversas a  limites existenciais comuns. Assim, a  diferença  não se  equaciona  com  a ameaça, mas com  a  alternativa. Ela  não é  uma  hostilidade  do "outro', mas uma  possibilidade  que  o "outro" pode abrir para o "eu".
(Este texto foi obtido pela Internet)
(do Livro: "O que é Etnocentrismo", Everardo Rocha, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 7-22)

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